Nenhum texto é uma unidade fechada em si mesma. O texto, depois de produzido, sempre estará entregue ao discurso da História e a seus efeitos. Segundo Bakhtin:
“Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia em mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.” BAKHTIN, M. M./VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988[1929], p.113.
Assim, qualquer texto estará sujeito a releituras em suas mais variadas épocas. Não importa quando foi escrito ou o nome do autor e a sua importância, todo texto será uma “ponte lançada entre mim e os outros”. E as (re)leituras surgem em multiplicidade construindo a significação do texto.
Toda essa rápida introdução a respeito do texto, da palavra e da relação autor/leitor tem apenas o intuito de apresentar uma paródia, como releitura do texto de Kazantzakis, publicado aqui neste blog (Introdução de Ascese). Um leitor de minhas humildes postagens surpreendeu-me com magnífica paródia sobre o texto do escritor grego, provando o quanto um leitor pode ser autor em sua produção de sentido.
Antes, porém, uma nota a respeito da paródia.
Paródia significa “canto paralelo”, incorporando a idéia de uma canção cantada ao lado de outra, uma espécie de contracanto. É uma escrita transgressora, que transforma o texto original: articula-se sobre ele, reestrutura-o, mas ao mesmo tempo introduz um movimento de negação.
“Na paródia, a fusão de vozes é impossível, pois elas provêm de mundos diferentes; elas se fazem ouvir numa leitura polifônica”. (FÁVERO, in: Diana Luz P. de Barros e José Luiz Fiorin. Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade, Edusp, 1994)
Isso significa que se mantém o texto de Kazantzakis lado a lado com o do leitor, sem que se perca a identidade de cada um.
Ainda citando Bakhtin:
“O processo de luta com a palavra de outrem e sua influência é imensa na história da formação da consciência individual. Uma palavra, uma voz que é nossa, mas nascida de outrem, ou dialogicamente estimulada por ele, mais cedo ou mais tarde começará a se libertar do domínio da palavra do outro. Este processo se complica com o fato de que diversas vozes alheias lutam pela sua influência sobre a consciência do indivíduo.”
Vejamos, portanto, como a voz de Kazantzakis agiu e influenciou a deste leitor: (Não deixem de reler o texto original para comparar)
O ABISMO
ALVINHO
Viemos de um abismo de cevas; findamos num abismo de cevas: ao intervalo, entre um e outro damos o nome de conversa, petisco e banheiro.
Tão logo abrimos principia a espuma; o gosto e o gole são simultâneos; brindemos a cada instante. Por isso muitos proclamaram: o copo, tragam o copo.
Todavia, tão logo bebemos, principia o esforço de ir à geladeira, chamar o garçom, cortar o salame: a cada instante brindemos.
Por isso muitos proclamaram: o copo da vida é o copo é o copo é o copo. Nos mictórios, corpos vivos lutam em duas correntes: 1ª os que querem entrar, desaguar, aliviar, rumo à primeira portinha aberta; 2ª os que já saíram, tranquilos, sorriso à boca, rumo à mesa, mais cerveja.
E as duas correntes se originam da mesma substância primeva: a ceva. De começo, o gole surpreendente, uma reação gustativa, gelada e efêmera às trovas das bocas sedentas; mas quando nos aprofundamos, nem percebemos que a ceva é a própria ceva do rpincípio ao fim dos versos e reversos.
Se fosse ou não assim, assado, grelhado, ou na brasa de onde viria todos os acompanhamentos que nos impele e nos lança nesses encontros tão sagrados.
Cumpre-nos então, acender unzinho e articular e harmonizar os impulsos sem princípio nem fim deixando o nosso pensamento e ação à deriva.
No final, é isto o que todos somos? |
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Bacana isso. Em Linguagem e Ideologia, o Fiorin falando sobre algo parecido ao que colocou no ínício, também cita o Bakhtin ao dizer que: “O texto é, pois, individual, enquanto o discurso é social".
Olá Carolina,
O dom da palavra todos possuem, mas nem todos possuem o poder da palavra.
Expressar não é tão simples quanto possa parecer, é preciso imaginar que daqui dezenas ou centenas de anos, o contexto poderá parecer sem sentido ou de repente até mesmo muito atual.
Tudo depende de quem escreve e de quem lê.
Há muitos supostos filósofos, filosofando filosofias inúteis por aí.
É preciso ler e interpretar.
Abraço
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