Lançado em 22 de setembro de 2012, no Centro de Estudos Helênicos Areté (São Paulo), o livro A Odisseia de Nikos Kazantzákis: epopeia moderna do heroísmo trágico é o resultado de minha pesquisa de doutorado desenvolvida de 2006 a 2010 na UNESP- São José do Rio Preto (com apoio FAPESP e sob a orientação de Marcos Siscar).
Apresentamos, a seguir, breves informações sobre a obra de Kazantzakis e sobre a pesquisa acerca dela. O livro está disponível na Livraria Cultura.
A Odisséia, de Nikos Kazantzakis, é o resultado
de catorze anos ininterruptos de elaboração; sete vezes retomada e reescrita,
chegando a totalizar mais de 42 mil versos - em uma das versões. O texto
definitivo, publicado em 1938, conta com 33.333 versos de 17 sílabas poéticas
divididos em 24 cantos. A dimensão da obra e a linguagem carregada de dialetos
das aldeias locais e de neologismos, além das abundantes figuras poéticas, têm
sido um desafio aos tradutores. As primeiras traduções, portanto, somente
surgem com alguma demora: a versão em inglês de Kimon Friar de 1958; a francesa
de Jacqueline Moatti, em 1968; e a castelhana de Miguel Castillo Didier, em
1975.
O poema retoma o tema de
Ulisses, tomando início no canto XXII, verso 477, da Odisséia de Homero, quando o herói acabara de exterminar os
pretendentes de Penélope. A aparente continuação dos feitos do herói lendário,
entretanto, reorienta o sentido do destino glorioso do herói clássico. Logo em
seu primeiro encontro com a esposa, o filho e o pai, longe de sentir-se
apaziguado pelo fim das atribulações do trajeto de retorno ao lar, o Ulisses kazantzakiano sente
profundo desencanto, e sua ilha tão desejada torna-se a seus olhos estreita e
asfixiante. Decide, então, partir novamente, com alguns poucos companheiros,
sem rumo determinado. Se na primeira Odisséia
o tema é a volta (nóstos), na Odisséia kazantzakiana há uma tentativa clara de superação da
meta representada pela chegada à Ítaca. Como reavaliação moderna do herói de
Homero, o herói de Kazantzakis mantém-se em marcha, ultrapassando suas próprias
conquistas, visto que a chegada não manifesta nele o apaziguamento, e sim o
desejo de ir além.
A trajetória de Odisseu marca-se não só por uma extensa cadeia de perigos
e pela incessante busca de um sentido que possa ser atribuído à existência, mas
ainda por um exercício constante do movimento de superação, seja de conceitos
ou de valores, incluindo-se a própria identidade pessoal. Tal superação, para
Kazantzakis, é ininterrupta e a ela dá o nome de “ascese”. Para o autor, é
preciso realizar um percurso de libertação dos preceitos impostos pela
metafísica e pelo cristianismo, que são formadores do pensamento e
influenciadores das atitudes do homem, impedindo-o de realizar suas próprias
avaliações da realidade e ceifando seu poder criador. Kazantzakis tenta, pois,
superar os valores pautados na supremacia cristã e platônica de um mundo
além-morte, que negligenciam os instintos naturais do homem e desvalorizam a
vida terrena, visão que se verifica abstratamente em seu texto híbrido Ascese
Os Salvadores de Deus.
Uma das leituras possíveis da Odisséia é constatar as diversas tensões que permeiam sua
constituição temática e estrutural e aventar como elas oferecem elementos para
a problematização da própria modernidade: a relação entre tradição e ruptura e
entre superação e permanência do gênero épico. Articulando a análise textual do
percurso de Odisseu e a construção “em processo” de sua identidade com as
tensões que a obra suscita em seu contexto histórico-literário, pretendemos,
inicialmente, avaliar a possível (e paradoxal) reabilitação do gênero épico em
tempos modernos e a classificação da Odisséia
como epopéia trágica inserida no contexto filosófico e teórico com o qual
dialoga.
A
segunda parte deste trabalho procura reconhecer em Odisseu os traços do herói
clássico e lendário, com base na área específica dos estudos gregos, perfazendo
o itinerário empreendido por ele a partir da ruptura com Ítaca e o início da
nova viagem para além do nóstos
homérico. Interessa-nos elucidar a constituição da identidade de Odisseu, por
meio das diversas etapas e episódios que protagoniza, no intuito de
caracterizar a heroicidade particular deste personagem “entre mundos” e a sua
importância na configuração da obra em sua integralidade. Assim, parece-nos que
a escolha de Odisseu como personagem da epopéia moderna, não apenas recupera os
dados da antiguidade literária, mas vive de sua tensão, na medida em que a
reinterpreta à luz da história do século XX.
A
terceira parte concentra-se em todo o movimento de superação do herói
empreendido após a ruptura com a pátria e com a própria Odisséia de Homero, itinerário que caracteriza a “segunda
odisséia”. Voltaremos, assim, a articular a análise textual dos episódios da
narrativa com a discussão teórica acerca do momento histórico, compreendido
aqui como discurso de crise e decadência. Relacionando, pois, o percurso do
herói com o momento histórico da modernidade e as linhas filosóficas que dão
significado a essa árdua viagem e expressam a visão particular do autor sobre o
contexto de crise, a análise prossegue atenta ao sentido de viagem que a Odisséia produz.
O
percurso de análise proposto para esta pesquisa inicia-se com a figura de
Odisseu, herói afamado e desconhecido entre os familiares, que se lança ao
anonimato da criação, e encerra igualmente com a mesma figura, no entanto, já
não será o Odisseu herói, mas, simplesmente, o poeta afirmador da vida.