A tela do computador continuava branca, impávida. Maia poderia marcá-la, rabiscá-la, manchá-la. A página continuaria íntegra. Sem a impressão de um único arranhão. Ilesa. Por isso destemida. Queria perfurar, derrubar a tinta no papel, estraçalhar, rasgá-lo em mil pedacinhos. A tela invencível. Precisava escrever algo para a aula de Beto Candice. A música inspiradora não estava adiantando. Às vezes brigava com as palavras. Não vinham, não formavam correntes, não cresciam em idéias. As mãos vermelhas. Suas mãos continuavam brancas como a tela. Água. Precisava dedilhar sobre a dominação. Os dedos. Dominação. Autoridade. Autor. A barriga continuava a tremer. A água foi providencial. A serpente domina o pobre do sapinho com seus olhos vermelhos. Vermelho. Ou enfeitiça? É o mesmo? Elevar-se. Influenciar. Ou conter-se. Instintos. A cobra não domina os próprios instintos, usa-os como arma. Bang. O chão. Aquele rosto por cima. Ele a devoraria se já não dominasse os instintos? O feitiço. A presa. O poder. A supremacia. Ali, estendida no chão... sentada... era a presa. E seria tão bom ser devorada. O pobre sapinho esperou, obediente, paciente. A boca enorme, a vontade enorme. O beijo enorme. Não foi devorada, mas o feitiço... vivo o feitiço.
Nada sairia naquele momento. Era melhor desligar tudo porque sua mente divagava. O encantamento não combinava com o pensamento lúcido. Já havia sentido o efeito outrora, não se lembrava que impedia o curso normal da vida, o bom desempenho das atividades diárias. Que forma protocolar de dizer! Mas queria voltar ao seu estado normal. Estado de liberdade. De fazer coisas sem pensar em outras. Com a alma dominada, atada a outra alma, seu pensamento não era incisivo, sua força não era superior a si mesma. Voava. E parecia permanecer em estado de enlevo. A vontade imensa. Não sabia do que exatamente. De beijar... de estar perto... de que as coisas fossem diferentes... de que aquele beijo pudesse ter acontecido... de que o amor não existisse! O não-amor era mais seguro. Mas feitiço e amor podem se confundir? O que estaria sentindo? Precisava definir? Seu coração precisava disso? Nem sempre as respostas eram bem-vindas. E ainda tinha a sombra de não ter feito o trabalho de literatura. Até amanhã deveria pensar em algo.
O fragmento é parte constituinte de um projeto de livro inacabado, 1999.
Nota do Sótão: Neste ano, nasceu a pequena Rebeca, e eu concluía a graduação. Era mãe de duas pequenas loiras, de olhos claros. Eu não era ninguém. Simplesmente atada às escolhas anteriores. E, ainda assim, escrevi 52 páginas, amamentando, estudando, criando... sem rumo para o futuro. É uma loucura pensar que demorei tanto tempo para voltar a escrever. As condições também não eram lá favoráveis, mas nunca foram e eu escrei em 1999. Escrevi em 1995. Escrevi em 2003. Escrevi em 2008. E só em 2011, estou me colocando no rumo, no rastro do Centauro Amarelo.
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Bacana o uso de elementos naturais instintivos numa figura bem xamântica sobre o desejo. No xamanismo a serpente é um dos bichos considerados “animais do poder”. De fato, o encantado entra nesse transe involuntário, como um bicho hipnotizado... catalepticamente paralisado à espera de ser comido.
=(0y0)=
Muito interessante.
Não pare mais de escrever! rsrs
A mente humana é como o infinito, mas como dominá-la.
Bom exercício de escrita.
Voltarei todos os dias para vasculhar as novidades
Abraço
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