Tudo começou com um vídeo. No Facebook. Eu nem me dera por ele, mas o Alvinho captou e não mais desgrudou. "Vamos escrever sobre o Mergulho". Todos, em um círculo, cada qual com a sua inspiração. Obviamente, todos escreveriam sobre o mesmo tema. Assim, nasceu o primeiro e o segundo textos em Onoma kai Pragma; sem seguida foi a Bianca do Inverno das Flores. Faltava eu... essa semana, porém, nada escrevi... dei voz somente aos grandes poetas - Manuel de Barros e Walt Whitman.
Mas e o mergulho? Busquei a queda livre, o lance no abismo, entre meus textos guardados. E o encontrei. Sim, em algum outro momento, este tema já foi importante, pensei sobre ele. Coincidência feliz, eis o meu mergulho:
Ele estava caindo em um abismo, abria os olhos, tentava usar seus superpoderes, mesmo sabendo que era humano. O abismo não desaparecia. Ele sentia seu corpo deslizar pela atmosfera, em quase nula pressão. Um lento barquinho descendo pelas ondas do ar. Havia imaginado e até desejado tantas vezes essa queda. Como arremessar-se ao nada dentro de um carro. Agora o fortuito lhe indicava a rota. A queda era confortável, o vento veloz.
Gritar era impossível. O ar entrava pela boca e formava um balão. Não sentia, tão desesperadora era a sua condição, mas o ar lhe promovia um abraço, amainava sua queda. Ao cair, sentia seus membros se enrijecer, o frio sugava o sangue de sua carne. Não houve tempo para pensar, para atinar com razões, causas, poderes naturais que lhe impunham esse desaviso. O mergulho foi certeiro e ali ele ficou, a nadar em seu desespero.
Amargou lágrimas, sentiu as dores do suicídio. Açoitou-se no rancor, na vã expectativa de encontrar um autor que assinasse a sua descida. Sem forças para levantar não rogou ajuda. Na queda, Deus, forças protetoras e até mesmo o amor voaram de seus bolsos e se dispersaram para uma nova morada. Na árida terra do abismo, lamentou os inúteis dias vividos, a impossível recompensa, a transitoriedade de tudo. Nos confins, numa terra de ausências, confortou-se com a sua única presença. E então, sem gritar, pôde falar.
Caí e não olhei ao redor. Não lancei um prêmio ao herói que me sustivesse em seus braços. Saltei e não indaguei se sobreviveria. Enquanto as luzes do norte pudessem amarelecer a poeira de meus sapatos, eu seguiria. Viajaria. Mas não desviaria meus olhos para as margens. Saio, enfim, a esmo e durmo no capim. Na lentidão da noite, descubro quão forte é o arroubo das lembranças. Não pertenço ao nada, pertenço ao latim. Não vivifico a noite nem as brumas. Mas descubro que existe um subir. As lembranças me indicam a existência. Amarrado à terra de meu inferno, começo a brotar. Ouço vozes distantes. No deserto, as miragens começam a se voltar para mim. Vejo dores e explosões. Mas vejo o vento varrer tudo e carregar num redemoinho. A areia fica eterna. Seus grãos são carregados para terras longínquas e desconhecidas, e um dia retornam. Entendo que tudo fica, nada parte, nada se distancia. No contraste do deserto, começa a nascer a sombra, desenrola-se por todo o amarelo. Bate com estrondo por toda a areia, lançando chuviscos pelo espaço. As migalhas que sobem transformam-se em pássaros. As migalhas que correm criam pernas e procuram a cidade. E tudo vai serenando. A sombra encolhe, divide-se em milhões de partículas que dardejam por todo o universo. Algumas vezes, cansadas, elas se afiguram ora como flores, ora como estrelas, ora como crianças. Essas visões eu acabo de ter, e como um grão de areia, como galhos que se estendem, também subo. E voltejo o olhar por dentre as nuvens. E assim encontro com o céu, transformo os prazeres e a fortuna em mundos de algodão.
Conto publicado em O Centauro Amarelo. Ribeirão Preto, 2002.
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É o tipo de narrativa que gosto. Esse tipo de labirinto com circuito bem desenhado, os olhos da gente correm por ele e o prazer disso vai muito além do fato de haver ou não ali expressões de elevação ou palavras bonitas.
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